PARTIR ROMPER VOARpor Francisco Bosco*
Há uma célebre cena em que Indiana Jones depara com um espadachim virtuoso, que brande com exímia destreza sua espada, procurando intimidar o adversário com sua demonstração de perícia. Diante de tal impressionante performance, Indiana faz a única coisa que lhe cabe: saca de um revólver e dá um tiro no espadachim, liquidando o problema.
Quase 2.500 anos antes, reza a lenda que o conquistador macedônio Alexandre, o Grande, chegava à Frígia, atraído por um problema que intrigava a Antigüidade. Um rei, de nome Górdio, deixara uma carroça amarrada no templo de Zeus com um nó impossível de desatar. Um oráculo havia profetizado que quem conseguisse deslindar o nó conquistaria o mundo. Muitos outros reis e guerreiros haviam tentado, mas todos fracassaram. Em sua vez, Alexandre postou-se diante do nó, olhou, examinou, pensou – e com um golpe de espada partiu-o ao meio.
Pois bem, o que têm em comum Indiana Jones e Alexandre, o Grande? Eles têm em comum a capacidade de realizar um ato. Um ato não é uma ação qualquer. Um ato é uma ação transformadora, que intervém na realidade, reconfigurando-a. O que as duas cenas acima revelam é que a realização de um ato implica uma mudança de paradigma. Um paradigma é um modelo, um padrão que determina um estado das coisas. No caso de Indiana, colocou-se para ele o paradigma do espadachim, isto é, do homem virtuoso em armas brancas; se fosse lutar com ele dentro desse paradigma, fatalmente perderia. Então ele saca o revólver e mata tanto o paradigma quanto seu adversário. A mesma situação impossível se coloca diante de Alexandre, cuja espada corta o paradigma do nó – que é o paradigma do pensamento, das especulações lógicas, da reflexão – e instaura, por esse ato, o paradigma da ação.
Muitas vezes em nossas vidas nos debatemos com situa¬ções impossíveis, enredamo-nos em nossas próprias teias, e nos exaurimos tentando nos desvencilhar, sem sucesso. Compreender essas situações pode ser um passo importante, mas não basta, e às vezes é tanto um remédio quanto um veneno: o saber pode nos afastar do ato (sendo essa a tendência do sujeito neurótico). Em casos assim, só o ato liberta. E um ato é geralmente algo difícil de realizar. Costuma exigir uma alta concentração de força, um acolhimento da angústia, um retesamento das energias negativas que preparam o salto do ato. Não havendo esse processo, dá-se um ato em falso. Uma ação que não se sustenta, que não modifica a ordem das coisas e a situação, nela, do sujeito. Mas o verdadeiro ato é libertador, abre um rasgo nas coisas, faz surgir um céu e um caminho. E um ato requer uma mudança de paradigma para que possa sustentar-se: o nó górdio nunca mais intimidará Alexandre, pois este instaurou o paradigma da espada, da ação. De um grande e amaldiçoado labirinto, a única maneira de sair é: voando.
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Francisco Bosco é escritor, ensaísta e letrista, autor de Banalogias e Da amizade, entre outros. Sua coluna para a Trip, que estréia neste mês, não terá lugar fixo: a cada edição, seu texto irá acompanhar uma reportagem da sua escolha, com tema afim. Seu e-mail é franciscobosco@terra.com.br
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É PERMITIDO PROIBIR-SEDiante do canto da sereia da fartura, prender-se ao mastro de uma autoproibição - como trancar o celular na gaveta ou bloquear os e-mails - pode ser libertador
por Carlos Nader*
”É proibido proibir”, dizia o mote de maio de 68, sintetizando o vento libertário que começou a soprar naquela época. Fazia todo sentido, num mundo que ainda não tinha se livrado de ditaduras ambidestras e de moralidades sem nenhum jogo de cintura.
Fazia. Hoje, “é proibido proibir” pode servir melhor como lema de trafi cantes ou corruptores. Foram os próprios ventos da liberdade conquistada que, com os anos, arrancaram uma a uma as capas heróicas da frase estudantil para deixar nu todo seu simplismo. Liberdade é uma idéia livre e, por isso, bem mais complexa.
Até “prisão” pode significar “liberdade”. Sabemos disso desde pelo menos a Grécia antiga, graças à visão luminosa que o poeta cego Homero nos dá em sua Odisséia. Nela, sabemos, Ulisses se faz prender no mastro do próprio barco para resistir às sereias, cujo canto hipnótico, este sim, o prenderia para sempre. Aprendemos assim que a decisão autônoma de se privar da própria liberdade pode garantir, muitas vezes, uma liberdade mais plena.
O gesto libertário de Ulisses é resultado do conselho de uma feiticeira, Circe, mulher sabedora de que as leis da vida têm meandros que escapam ao raciocínio dos retos (e por “retos”, caro leitor, não me refi ro aqui à parte fi nal dos intestinos, que sei terem uma familiaridade com os meandros da vida muito maior que a dos líderes estudantis).
Muitas ondas mediterrâneas mais tarde, outro poeta, Waly Salomão, ou como ele mesmo quis, Sailormoon, o homem mais livre que eu conheci, me deu uma visão ainda mais radical da idéia de prisão enquanto libertação. Sem o menor traço de melancolia, ele contou que escreveu seus primeiros poemas numa cela do Carandiru. Waly me disse ainda que sem o confi namento espacial e temporal dos dias de cadeia talvez ele não tivesse escrito um só poema. A restrição dos movimentos liberou as forças poéticas. Aconteceu assim. É claro que ninguém aqui está defendendo que saiamos prendendo uns aos outros para nos libertar. Paradoxo por paradoxo, prefi ro aquele do Estado de Direito que diz que a liberdade de uma pessoa, se não for limitada pela própria pessoa, só pode ser limitada em nome da liberdade das outras pessoas.
Mas ainda encontra muito eco por aí a idéia de que todo e qualquer questionamento das liberdades conquistadas desde a segunda metade do século 20 seja uma espécie de blasfêmia moderna. A sacralização dessas liberdades, ainda que geralmente ungida por setores bem-intencionados, como a imprensa ou os liberais econômicos, pode acabar servindo aos interesses de quem justamente quer ver menos liberdade no mundo. Entre eles, todos os que têm interesse, por exemplo, em que um escândalo de jornal apague rapidamente o outro ou que centenas de novos produtos sejam lançados só para tornarem démodés os anteriores.
PROTÓGENES DE SI MESMOSei que a questão aqui acaba se tornando complexa demais para uma solitária página de revista. Ainda que não possa estar sujeita a cânones “imexíveis”, a demarcação da liberdade dos outros tem que necessariamente passar por uma discussão bem mais ampla e demorada. Caso a caso.
Já no que diz respeito à privação das próprias liberdades, o processo pode ser muito mais simples. Numa época que está se defi nindo por um laissez-faire pra lá de insustentável, por um excesso de produção e consumo tanto de mercadorias quanto de informações, é muitas vezes necessário decidir amarrar-se a mastros. É preciso ser bem mais cego que Homero, ou mais burro que o Homer, para não ver que há algo de muito atual no gesto de Ulisses e, grego por grego, entender que é libertador permitir-se ser às vezes um delegado Protógenes de si mesmo.
A fartura sedutora que hoje é oferecida ao cidadão urbano tem se transformado num canto de sereia escravizante. Autodetenções podem vir a ser muito libertárias. Em pequenas coisas. Sei lá. Trancando o celular na gaveta durante todas as manhãs. Bloqueando a caixa de e-mails no fi m de semana. Exilando-se da TV por um mês. Detendo-se todo dia diante de uma compra compulsiva. Fechando a boca periodicamente, seja para comer menos, seja para ouvir mais. Coisas simples assim. Que mudam tudo. A escolha depende de cada um. Cada macaco no seu mastro. Disciplina é liberdade. É permitido proibir-se.
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Carlos Nader, 43, homem de mídia, teve aulas de liberdade com Waly Salomão